#4 Lendo o Mundo: México — Como Água para Chocolate, de Laura Esquivel

Banana Dinamite
7 min readJan 5, 2021

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Eu li dois livros de autores mexicanos em 2020. Estou tentando diversificar minhas leituras para não ficar apenas em clássicos já consagrados pela crítica, mas também conhecer autores contemporâneos. Felizmente, não tive como escapar dessa recomendação maravilhosa do livro 1.001 livros para ler antes de morrer. México foi então meu quarto destino nessa viagem literária, com o representante do livro “Como água para chocolate” da Laura Esquivel.

O Livro

Várias edições do livro “Como agua para chocolate” de Laura Esquivel

Como água para chocolate é um romance escrito em 1989 que dialoga muito com pessoas que cresceram perto das cozinhas e tem uma relação bastante sentimental com a culinária.

O enredo conta a história de Tita, a caçula de uma família de três irmãs e uma mãe viúva. Além dos pedaços de história que recebemos da protagonista, também descobrimos a vida de outros personagens que a cercam e a relação única e mágica de Tita com a comida.

Cada um dos capítulos apresenta um prato e cada prato se mistura ao sabor dos sentimentos de Tita. As receitas são desenvolvidas mostrando os rituais de preparação se misturando com os momentos que a personagem está passando em sua vida pessoal. Como Tita é uma mulher em uma casa que não podia ter voz, enfrentando tradições desconexas e uma mãe opressora, seus sentimentos são transbordados para os alimentos que prepara, e, consequentemente, para quem os consome. E então a magia acontece.

O eixo central da trama é o amor intenso de Tita e Pedro, que persiste diante das provações do tempo e das causadas pela família de La Garza, enquanto acontece a Revolução Mexicana. Uma história mais densa que o primeiro olhar pode dar, indo além de intrigas da vida doméstica.

A autora:

Laura Esquivel nasceu na Cidade do México, em 1950. Começou escrevendo histórias infantis enquanto dava aula para crianças no primário, além de escrever enredos para a TV mexicana. Acreditava que histórias domésticas tinham tanto impacto como histórias da sociedade em geral e, por isso, desenvolveu vários enredos que falavam sobre família, relacionamentos e tradições, frequentemente utilizando a culinária como metáfora.

Seu romance “Como água para chocolate” vendeu mais de 4,5 milhões de cópias para todo o mundo, sendo traduzido para 35 idiomas, adaptado para os cinemas em 1992 e recebeu o prêmio American Booksellers Book of the Year Award — primeira vez atribuído a um autor estrangeiro.

Embora o livro “Como água para chocolate” tenha sido seu livro mais famoso, Esquivel também escreveu vários outros romances. Todos eles exploram temas de amor e, muitas vezes, fome, enquanto se concentram nas relações entre homens e mulheres. Todos eles também se afastam de gêneros literários tradicionais de alguma forma, contendo elementos de realismo mágico, ficção científica ou mitologia.

Detalhes sobre o livro:

Ilustração de Tita por Gaby D’Alessandro

Para os fãs de Realismo Fantástico:

Desde os primeiros capítulos, há presença de eventos fantásticos atrelados aos comuns sem a estranheza dos personagens. Isso funciona como uma forma de representar as dualidades da vida nas regiões colonizadas — lugares como o México onde as crenças religiosas indígenas coexistem com as crenças da Igreja Católica ou onde existe uma tensão histórica entre ditadura e democracia. Os principais eventos fantásticos do livro são desencadeados pelas emoções que Tita transmite para a comida enquanto a faz.

Mais que um livro de Receitas:

Como já dito, cada capítulo do livro inicia-se com um mês, uma receita e instruções para preparar o prato que dá nome ao título. Misturado a essas instruções escapam relatos da vida cotidiana. Essa estrutura foi um regaste a uma tradição do séc. XIX na literatura feminina mexicana, que misturava receitas e histórias domésticas com viés para vida moral. Mesmo fazendo esse resgate a essa tradição, a autora reinventa a estrutura mostrando atitudes e mensagens pouco tradicionais, transformando em um livro de receita para a independência feminina.

A Revolução Mexicana

Há a representação de duas revoluções dentro do livro: a revolução que ocorre dentro de casa da metáforas para a Revolução Mexicana que ocorria durante o período do enredo. A Revolução Mexicana foi uma luta longa e sangrenta, tendo início com uma rebelião contra o governo do general Porfirio Díaz. A metáfora dos La Ganza reflete a revolução. Apresenta Mamãe Elena como o lado opressor determinado a manter as tradições. Rosaura, a irmã mais velha de Tita, como os proprietários de elite que se beneficiam com o sistema. Gertrudis, irmã rebelde do meio, a Generala da revolução, representando o povo que se revolta e desencadeia a revolução. E por fim, Tita, a guardiã da harmonia, tentando conservar as tradições que a favorece, como receitas, mas ao mesmo tempo buscando sua liberdade.

Post do instagram bananadinamite

Razões para ler hoje:

  1. A forma como autora descreve a luta entre a Tradição e a Mudança: a guerra entre as duas ideias permeia toda a história, mas recebe uma nova perspectiva por causa das metáforas fantásticas da autora. A tradição familiar, bem como a reputação de uma certa dama, é posto à prova quando um prato de Codornas em Pétalas de Rosas entra na mesa.
  2. Importantes lições que são transmitidas sem esforço: Dois assuntos me chamaram a atenção ao final do livro: a importância do autoconhecimento e a força do amor (ou a falta). Não tenho como descrever esses temas sem fornecer spoilers para quem pretende ler. Então vou apenas sugerir para fazerem um paralelo com as ações dos personagens Pedro Muzquiz e John Brown assim que lerem.
  3. A deliciosa maneira como a autora trata nossa relação com a comida: Se ler este livro sem ter vontade de fazer algum desses pratos ao longo da narrativa ou, simplesmente, sair cozinhando algo que você gosta muito, desculpe, mas em algum momento você se desligou. Ter esse sentimento me prova que narrativas simples e criativas podem lançar um novo olhar para rituais do cotidiano, entregando significados que excedem a vala comum.
  4. É uma ótima indicação para quem quer ler algo leve: Apesar dos apontamentos que fiz sobre a trama, é um livro fluído e de se ler em duas sentadas. Talvez pela proximidade com enredos de novelas mexicanas, cada capítulo deixa ganchos que instigam a continuar lendo os próximos.
Ilustração do pôster da produção musical da Broadway feita por Stefano Vitale

Minha Experiência:

Eu amei tanto ler esse livro. Algo nele casou comigo de uma forma que modificou a forma como hoje eu cozinho, coisa que eu não gostava tanto de fazer e o final dele foi um soco no estômago para uma pessoa que gosta muito de racionalizar emoções. O debate sobre o papel da mulher e o valor dela é uma assunto que me incomodou ao longo do livro. A vida de Tita não é fácil e apesar de achar lindo o fim da história, sinto ela dolorosamente amarga. Acho que isso reflete muito o sabor do amor maduro ou o amor intenso que a personagem entrega a Pedro, que, de coração, não merecia nem um terço disso. Mamãe Elena também foi uma personagem que gerou várias reflexões com sua dureza e atitudes cruéis de alguém que parou de amar. Minha edição foi essa da coleção “Mestres da Literatura Contemporânea”, da editora Record/Altaya com tradução de Olga Savary.

Por fim, materiais relacionados com a obra que valem a pena ser consumidos:

  • Filme: Dirigido por Alfonso Arau, o roteiro foi escrito pela própria Laura Esquivel. Ganhou 11 prêmios Ariel da Academia Mexicana de Filmes e se tornou o filme estrangeiro de maior bilheteria já lançado nos Estados Unidos. O filme foi lançado em 1992 e está disponível no serviço de streaming do Telecine.
  • Podcast: O episódio 104, do podcast Suposta Leitura desenvolveu um material bem bacana para quem gosta de ouvir mais opiniões sobre um livro. Por sinal, recomendo todos os episódios!
  • Resenha: Como Água para Chocolate — Laura Esquivel do canal do YouTube da Angela Escrito. É muito legal como ela faz o resumo dos melhores acontecimentos do livro. Se tudo que eu coloquei até aqui não te convenceu, vem ver essa resenha.
  • Resenha: Como ÁGUA para CHOCOLATE, Laura Esquível do canal do YouTube Aline & Os Livros, da Aline Fridman. Aline faz ótimos apontamentos sobre o livro e inclui um apanhado sobre as semelhanças desse livro com outros do gênero, como os famosos livros do Gabriel Garcia Marquez.
  • Receita: Sim, achei um vídeo ensinando uma receita inspirada no livro. É o Champandongo de “Como Água para Chocolate” | BIBLIOTECA NA COZINHA, do canal do YouTube Tastemade Brasil.
  • Texto: Coisas que pensei sobre Como água para chocolate, da Clara Ferrer que traz questionamento muito interessantes sobre o papel da mulher apresentado na narrativa.

Se chegou aqui do nada, e ainda não conhece o projeto #LendoOMundo, não se assuste, aqui vou deixar a retomada dos primeiros “diários de bordo”:

  1. Irlanda — As Viagens de Gulliver e 5 razões para ler hoje!
  2. Canadá — O Conto da Aia e ideias que tornam essa distopia original.
  3. Cuba — Cachorro Velho e razões para conhecer a antiga Cuba e nossas semelhanças históricas (ainda não postado por causa da faculdade).

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Written by Banana Dinamite

A liquidez da minha alma transborda na literatura, e, às vezes, na dança.